Já vos falei do carácter do meu filho? Tudo se passou quando ele pensou ser um tipo ou grafo - já não sei bem, quando decidiu montar um negócio de tipografia. Na cabeça dele funcionava, percebi-o depois, uma espécie da associação holográfica ou hiper-realista: tinha lido algures que a escolha dos caracteres era a parte mais importante em tipografia. Daí ter pensado de imediato que se tratava sempre de uma questão de escolha, de «livre-arbítrio»: que Ser era a forma de impressão de um livro - ou de uma fotografia. É difícil combater estas ideias falsas, mesmo nos adultos, já que elas se apoiam na materialidade e na banalidade da língua. Pensei, assim, levá-lo a uma tipografia - da mesma maneira, afinal, que se leva uma criança ao circo. Para que também ele se apercebesse de que, apesar da semelhança dos jogos (dos vôos Léotard, sem rede), os humanos não se confundem com as feras, tal como os caracteres não se misturam com os tipos. Ensinei-lhe tudo (o que pude): o Normand e o Garamond, o redondo e o itálico, o Futura. E contudo, súbita translucidez dele - ou pequena subtileza minha -, ele traduzia imediatamente o que lhe dizia em realidade outras, fossem elas conveniências ou ficções do espírito. Bem lhe tentei explicar o mecanismo. O que fiz eu? Desci a tudo. Citei-lhe Dante: disse-lhe que as tipografias não passavam de uma forma aproximada do Inferno; que nelas se entrava com poemas a mais e se saía sempre com penas a menos («poesias»). Que tudo aí era rabiscado, chumbado, até que pudesse um dia assumir a forma e a exterioridade visível (apreciável) de um tipo (escrito). Mas ele insistia. Procurando encontrar equivalências entre o espírito e o chumbo. A partir daí tive dificuldades em lhe explicar em que consistia um livro: para ele, aquilo que eu lhe apresentava era sempre muito volátil e frágil. No seu entender, a poesia devida resultar do próprio peso e produto das placas de chumbo; os livros, como tantas vezes impensadamente se costuma dizer, deviam medir-se pelo volume. Quilos e quilos de chumbo. Assim, conseguir-se-ia medir o peso de cada palavra  e página. Que alívio para a crítica! Cada leitura reduzir-se-ia a uma espécie de «braille» de letras que na resistência da sua matéria encontraria o seu fluido ou equilíbrio. Para ele, as livrarias - garanto-vos que foi o exemplo que ele me deu -, não venderiam mais do que simulacros de livros. Para corresponder ao prometido, elas deveriam assemelhar-se mais a grandes armazéns, entrepostos ou mercearias, em que a literatura e a alma se vendessem a peso e esse peso não fosse coisa fácil («aura») mas de chumbo. A partir desse dia tive dificuldade em lhe explicar porque é que escrevia livros.  Cada vez que lhe mostrava um, ele ria-se. Ia até um dos quartos e trazia de lá um brinquedo. Dizia-me: «Troco-te por esta boneca de chumbo! Uma bailarina...» Que responder-lhe? Estará ao alcance de uma criança - mesmo a mais promissora, um idiota - compreender que talvez nós próprios não passemos de umas provas, tantas vezes revistas e retocadas, de uma única e sempre (re)fundida placa de chumbo?...


Fernando Guerreiro, A Sagrada Família