«Olhem. Olhem.»
Estávamos acocoradas na nossa mansarda, em cima das tábuas que tinham de nos servir de cama, de mesa, de chão. O tecto era muito baixo. Só podíamos estar sentadas e de cabeça encolhida. Éramos oito, o nosso grupo de oito companheiras que a morte ia separar, em cima daquele cubículo estreito onde nos empoleiráva- mos. A sopa tinha sido distribuída. Esperámos muito tempo lá fora para passarmos uma atrás da outra diante do bidão que fumegava na cara da stubhova. Com a manga direita enrolada, mergulhava a concha no bidão para nos servir. Atrás do vapor da sopa, gritava. O bafo amolecia-lhe a voz. Gritava porque havia atropelos ou conversas. Esperávamos, sombrias, com a mão entorpecida a segurar na gamela. Agora, com a sopa em cima dos joelhos, comíamos. A sopa era suja, mas tinha o gosto do quente.
«Olhem, vocês viram, no pátio...
- Oh!» A Yvonne P. deixa cair a colher. Perdeu a fome.
O quadrado de grades dá para o pátio do block 25, um pátio fechado por paredes. Há uma porta para o campo, mas se se abre quando por lá se passa, pomo -nos depressa a correr, fugimos, não tentamos ver nem a porta nem o que pode lá haver. Fugimos. nós, pelo quadrado, podemos ver. nunca voltamos a cabeça para esse lado.
«Olhem. Olhem.»
Primeiro, duvidamos do que se vê. É preciso distingui-los da neve. O pátio está cheio deles. nus. Arrumados uns ao lado dos outros. Brancos, de um branco que fica azulado na neve. As cabeças rapadas, os pelos púbicos direitos, rígidos. Os cadáveres estão gelados. Brancos com as unhas castanhas. A bem dizer, os dedos dos pés levantados são ridículos. De um ridículo terrível.
No boulevard de Courtais, em Montluçon. Esperava pelo meu pai nas Nouvelles Galeries. Era Verão, o sol batia quente no asfalto. Havia um camião parado, com homens a descarregá-lo. Entregavam manequins para a montra. Cada um dos homens levava nos braços um manequim que deixava à entrada da loja. Os manequins estavam despidos, com as articulações à mostra. Os homens levavam-nos com todo o cuidado, deitavam-nos ao pé da parede, no passeio quente.
Eu olhava. Sentia-me perturbada pela nudez dos manequins. Já vira muitas vezes manequins na montra, com um vestido, uns sapatos e uma peruca, com o braço dobrado de forma amaneirada. Nunca tinha pensado que podiam existir nus, sem cabelo. nunca tinha pensado que existiam fora da montra, da luz eléctrica, sem aquela posição. Descobri-lo dava-me o mesmo mal-estar que ver um morto pela primeira vez.
Agora os manequins estão deitados na neve, banhados na claridade do Inverno que me faz recordar o sol no asfalto.
As que ali estão deitadas na neve, são as nossas companheiras de ontem. Ontem estavam de pé na chamada. Cinco a cinco, em fileiras, de cada lado da Lagerstrasse. Iam para o trabalho, arrastavam-se a caminho dos pântanos. Ontem tinham fome. Tinham piolhos, coçavam-se. Ontem engoliam a sopa suja. Tinham diarreia e batiam-lhes. Ontem sofriam. Ontem queriam morrer.
Agora estão ali, cadáveres nus deitados na neve. Morreram no block 25. A morte no block 25 não tem a serenidade que se espera dela, mesmo aqui.
Uma manhã, porque desmaiavam na chamada, porque estavam mais lívidas do que as outras, um SS fez-lhes sinal. Formou com elas uma coluna que mostrava, em ponto grande, todas as decadências adicionadas, todas as enfermidades que até então se perdiam na multidão. E a coluna, sob a conduta do SS, era empurrada para o block 25.
Havia as que iam por si sós. Voluntariamente. Como para um suicídio. Esperavam que um SS viesse fazer a inspecção para a porta se abrir e entrarem.
Havia também aquelas que não corriam suficientemente depressa num dia em que era preciso correr.
Havia ainda aquelas cujas companheiras tinham sido obrigadas a deixá-las à porta, e que tinham gritado: «Não me deixem. Não me deixem.»
Durante dias e dias tinham tido fome e sede, sobretudo sede. Tinham tido frio, deitadas quase sem fatos em cima de tábuas, sem palha nem cobertores. Fechadas com moribundas e mortas, esperavam pela sua vez de agonizar ou enlouquecer. De manhã, saíam. Faziam-nas sair à paulada. Pauladas em moribundas e em loucas. As sobreviventes tinham de arrastar as mortas da noite para o pátio, por- que também era preciso contar as mortas. O SS passava. Divertia-se a lançar-lhes o cão. Ouviam-se uivos em todo o campo. Eram os uivos da noite. Depois, silêncio. A chamada acabara. Era o silêncio do dia. As sobreviventes voltavam. As mortas ficavam na neve. Tinham-nas despido. Os fatos haviam de servir para outras.
De dois ou de três em três dias, os camiões vinham buscar as sobreviventes para levá-las para a câmara de gás, as mortas para deitar no forno crematório. A loucura devia ser a última esperança das que lá entravam. Algumas, cuja teimosia em viver tornava astuciosas, ao princípio escapavam. Ficavam várias semanas, nunca mais de três, no block 25. Víamo-las pelas grades das janelas. Suplicavam: «Beber. Beber.» Há espectros que falam.
«Olhem. Oh! Juro-vos que ela se mexeu! Aquela, a antepenúltima. Tenho a certeza que mão dela, os dedos dela estão a desdobrar-se.»
Os dedos abrem-se lentamente, é a neve que floresce numa anémona do mar descolorida.
«Não olhem. Porque é que estão a olhar?» implora a Yvonne P., com os olhos esbugalhados, fixos num cadáver ainda vivo.
«Come a tua sopa, diz a Cécile. Elas já não precisam de nada.»
Eu também olho. Olho para aquele cadáver que se mexe e me é insensível. Agora sou grande. Posso olhar para os manequins nus sem ter medo.
Charlotte Delbo
Auschwitz e Depois, trad. Joana Morais Varela