No ecrã, uma boa imagem é um rosto que não introduz sombra.
Se acontecesse um escritor agradar ao mostrar-se, seria o seu corpo que procurariam, e não a sua voz perdida, a sua voz extraviada e quase silenciosa sobre a página.
Todo o ser que se mostra vira as costas ao reino que não é visível.

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Escrever não é uma maneira de ser natural da língua natural. É uma linguagem que se tornou estrangeira ao diálogo. É uma língua estranha. É a língua tornada linguagem-a-ser. Escrever, outrora nos primeiros impérios neolíticos, arrancou a humanidade pré-histórica aos mundos onírico e imaginário. A humanidade pré-genérica estava sepultada nas suas grutas com imagens como nos seus sonhos. A humanidade específica, para além da língua oral, admoestativa, hipnótica, mítica, fez florir uma linguagem isolada sob a forma de letras.
A partir do escrito, engendrou uma linguagem mais só, uma linguagem sem contexto, uma linguagem interior, o secreto, uma parte de sombra inteiramente nova.
A moral dominante, recorrendo de novo à voz na imagem, voz proveniente da imagem, é de novo um mundo de mortos deificados e despóticos que tratam os homens como crianças ou escravos.
Como pardais, como calhandras, como touros: pães, espelhos, trapos.


Pascal Quignard, As Sombras Errantes