De tão rarificado, o ar já
não tem capacidade para
reter as imagens (de si,
na linguagem) pelo que
construía cenários - agora,
a escrever em casa ou
atravessando o rio onde
o poema com os limos
depois era recolhido -
de modo a que as palavras
encontrassem um quadro
em que se reflectir,
adquirindo a espessura
dos frutos que rolam
para o pensamento
já muito depois de nos
dentes terem amarelecido.
A linguagem dos anjos
corrompe-se na paisagem -
crosta sem fundura
que nelas entreabre
as frinchas do precipício.
Não tinha sido ela
a ali colocá-lo, à espera
que a noite caísse
e os barcos emergissem
do fundo, encadeados,
com as visões do seu curso?
E contudo, era simples
ou feliz a linguagem
de que se servia:
dedada de deus,
os pássaros rareavam
na cabeça e o caçador
tinha de os tirar de dentro
para que o surpreendessem
com os seus destinos.
Tudo grânulos de sangue
que depois compunham
a forma ardente
de uma paisagem ferida.


Fernando Guerreiro, Ventos Borrascosos