alguém de atalaia

Estou a mentir; imagino esse homem mais facilmente, mas está tão longe de mim como os outros, e pela mesmíssima razão: porque se cala. Tal como o Sr. Smith não há-de abrir a boca para falar das imagens que o guiam quando aperta a Sra. Smith, também este não há-de falar da confusão sentida de madrugada. As formas que poderiam dizer tudo isso não existem em nenhum registo visível ou invisível; para o exprimirem, só restariam os gritos inarticulados, os gemidos, as lágrimas, o riso... Seria como acreditar ir o Sr. Smith talhar em dois o peito com uma faca, em presença dos colegas. Não só tais coisas nunca serão ditas, como o comportamento do Sr. Smith até à morte (seu «primeiro» suspiro) atesta não existirem  para ele tais coisas. Lembrasse-se alguém de falar em vez deles, como a mim poderão censurar-me, e esse alguém não teria sequer de recear que eles o considerassem indiscreto; hão-de deixá-lo falar, da mesma maneira que o deixariam andar pelos passeios com um cartaz às costas, sem o atingirem com um só olhar. Mas longe de mim falar em nome deles, eu ouço-os, pelo contrário, visto eles exprimirem-se sem o mínimo erro; eles ali estão inteiramente formulados, e quem quereria intervir no desenrolar das fórmulas segundo as quais as noites da cidade são uma única frase, sem começo nem fim? Um inimigo da ordem, um doido, um homem condenado pelos seus próprios gestos, e a ordem lá se vê confirmada, de tal modo que estes doidos são talvez os servidores do espírito que congrega a multidão - os seus escravos furiosos que se não vêem, prisioneiros de estranhas tarefas sempre prematuras e sempre inacabadas. Nunca lhes ouvi os passos na minha zona de vazio; no entanto devem circular bastante pela cidade, na altura mais favorável ao efeito de acústica de que falei. Serão eles desconfiados ao ponto de adivinharem alguém de atalaia por detrás das paredes?


Henri Thomas, A noite de Londres, trad. Júlio Henriques