uma folha referente à letra v

Ensinou em Dublin grego e hebraico.
Em Burgos,
pelo muito sol, pelo intenso cheiro das macieiras
foi levado a dizer
esse est percipi.
Em Hamilton, assente sobre os corais das Bermudas
ensinou o problema trinitário a partir do
vermelho espelhado da maçã.
O rosto continua voltado para a cidade.
Demos a cada um as horas da procura.

Perdido Berkeley. Levas os dias
«Mozart foi muito infeliz em Praga», calas-te e
mais nada.
A calma de um espaço para além do prometido,
os lábios ressequidos pelo vento,
pela aspereza dos vinte anos.

Reduziu a juventude à ambiguidade dos lábios.
À perfídia dos estreitos pulsos.
Aos cabelos crescidos acima de todo o entusiasmo.
À procura de uma qualquer verdade
música guerra fidelidade.

A errância é o seu estado, a ilusão.
O corpo largado para a pequena marcha do comboio
entregue ao movimento da memória
de nada serve uma árvore seguindo
uma casa de outra casa.

Vazio o quarto do hotel. Vazio o corpo demais.
Vinha do tempo dos quinze anos e pousava uma estranha
dor, a amizade do pátio do liceu.
Era antes da aula de latim e o latim referiu todo esse
tempo,
antes, depois, na aula de latim,
e o dia em que não havia aula de latim.

Foi antes, disseste «empresta-me o teu dicionário».
Respondeu-te «dá-mo no fim da aula».
E mais nada.
E, no fim, devolveste-o sem uma folha à pressa arrancada.
Uma folha referente à letra v, onde vinha virtus
que nunca traduziste por coragem
sempre por virtude.

Essa folha ainda está em casa dos teus, numa velha
gaveta de secretária. Lembras-te?
Por agora chega. Volta depressa para o teu lugar.


João Miguel Fernandes Jorge, À Beira do Mar de Junho