(estilhaços de um texto sem solução)


«but I am able to seduce the material sometimes»


Alguém regressa do Sul e tenta extrair da sua estada um pequeno ensaio pertinente. Falha, desespera moderadamente. Depois de algumas tentativas diferenciadas quanto à forma da sua aproximação ao tema decide anotar, de memória, algumas experiências onde tenha sentido em si uma recalibração:

1. Um louco interpela outro à porta da Biblioteca Municipal. Pergunta-lhe se já tinha visto o vídeo que agora lhe mostra no telemóvel. O outro, entre grunhidos, passivamente, vê-o pela primeira vez. O primeiro, que anteriormente já presenciámos a falar sozinho num animado simpósio, começa a revelar que o vídeo é a prova que Isto está tudo muito bem feito, e puxa deus à conversa e anima-se incessantemente com o assunto. A certa altura enuncia o assunto do vídeo: a comunicação entre dois gémeos na barriga da mãe, prova da existência divina. Depois debanda impaciente por falta de reacção à altura.
Enquanto fumamos um último cigarro, eu e o segundo homem, e depois do outro ter já subido ao piso superior do edifício e ter retornado, vimos (vejo?) que este passa agora por nós com uma caixa de dvd’s na mão. Reconhecemos o rosto e os óculos escuros da contracapa do da ponta. Era Takeshi Kitano que acompanhava agora os passos do crente até casa.


________ regressar. Se pudéssemos dizer que esta é uma cidade feita à medida do nosso amor e do nosso corpo sem que um sorriso cínico forçasse as linhas da boca.
Passou-se algum tempo e não há ainda uma ideia particularmente brilhante para decifrar a empreitada;
dois passos atrás
para confirmar o óbvio: quando alguém diz povo


2. No bar, enquanto nos embebedamos sozinhos e lemos o primeiro Walser que comprámos.
A meio do Passeio, atordoados, lembramo-nos de um rosto que se apresentou e nos foi inesperado ao longo da semana. Voltamos à infância e pedimos em surdina que caso deus queira ter a gentileza de se mostrar que faça com que essa cara entre e se sente ali ao lado. Pois bem, entra e senta-se no limite oposto do bar com outras caras que nos são detestáveis e que, cremos nós à quinta garrafa, conspiram para o tal aniquilamento de quem somos pacientes alunos cautelosos.
As deambulações suíças parecem-nos agora um pouco puritanas.


- avós?
Falar amorosamente é cair no particular.


3. Uma tarde inteira na biblioteca. A cabeça começa a saltar a cerca das ideias envolventes ao trabalho: o povo de Baleizão. Entediados pelo insucesso saímos da sala de estudo para uma pausa. No caminho, entre mesas, avistamos um senhor, cinquenta e muitos, de bigodes levantados, barriga proeminente, caricatura do português que vai pedir um tinto no estabelecimento mais próximo. Lê com atenção. Voracidade. Reparamos na capa, reconhecemos o Saturno tenebroso. Leu incessantemente, quer-nos parecer, Ou o Poema Contínuo.
Avaliar o efeito que o livro teve no seu caminhar ou no dar as boas-vindas em casa, seria um mister pertinente.


Avó, 78 anos, analfabeta. Avô, 80 anos, quarta classe. Ambos aldeões de um local de 754 habitantes em 2011. Simplificando: pessoas ainda por representar.
Anota a certa altura: ah, mas o neorrealismo e estas locomotivas de romancistas dos últimos vinte anos saudosistas pelo campo… tudo lindo entre a caricatura e a beleza do instante capturado, mas a carne, as veias, a pele finíssima a escurecer ao sol, os cortes sucessivos, os pinheiros a derrubarem, onde estão? E se mos apontarem direi que não são os meus pinheiros, não serão as minhas mãos. Porque eu sou os meus avós e eles sou eu, mesmo que essa transmutação seja feita pela sucessão muda de milhares de dias. Ah, mas quem és tu e o que pretendes da tua inocência, tu a quem te falta tanta ciência luminosa (…)
Poderá uma reflexão ser edificada no corpo da intuição?


4. No bar novamente, sozinhos e sóbrios. Um desconhecido pergunta se pode sentar-se connosco à mesa. Acenamos que sim. Mexe no casaco, louva o facto de fumarmos ambos tabaco de enrolar. Conta que está a gostar da cidade, tira alguns remédios do casaco que claramente não seria o dele até há pouco tempo. Assuntos clássicos. Tinha vindo para a cidade com o intuito de se acalmar, reduzir de velocidade. No processo de desaceleração tinha ido abastecer-se à farmácia com os comprimidos que toma por recriação há vinte anos e apanhara alguma roupa encontrada na rua. Vinha de Lisboa. Diz que a sua actividade preferida é caminhar sem rumo, contemplar a arquitectura das casas. Acredito. A certa altura começa a fazer caretas involuntárias e percebe-se que tem dores. Tira do casaco uma garrafa de plástico com um líquido lá dentro. Abocanha a garrafa, bochecha a receita. Álcool etílico, para desinfectar, açúcar, para tornar a mistura consumível e dar energia, cafeína, para o manter desperto, sumo de manga pelo sabor. Tinha partido um dente nesse dia a fazer um brinquedo em arame para uma criança. Coça-se, vemos algumas marcas na pele. Depois de um bom bocado relaxa e quase adormece.


_________ o barulho da armadilha ao ser montada.
Decidimos ir a uma sessão onde dois filmes e uma conversa orbitavam sobre o tema da «alegria» e foi ali que vimos pela primeira Vidros Partidos de Victor Erice e foi ali que estremeci vendo cada rosto daquela fotografia tirada há várias décadas naquele refeitório.
Também eu me sinto capaz, por vezes, de seduzir os materiais. Acredito a meio da sessão que a nossa vinda até ali fazia parte de um jogo mais amplo, uma dança entre o meu entrave intelectual e o arranhar da porta pela besta que procura a luz passada, panorâmica. Também eu, com as ferramentas dos homens, abro caminho pelo cascalho ao nível das solas e pela orientação dos veios da madeira.


5. Ouvir a Mariana Bicho, pela primeira vez, a cantar modas e orações. Emocionar-me por rever naquele tracejado gravado na pele alguns gracejos e miséria familiar. E pela primeira vez sei qual o nome que te faz jus, bela infanta.


desde que começámos a viver juntos sinto a necessidade de sentir os compartimentos vazios. Não é a tua presença que me ameaça, mas a falta de vazio. No sul tive um palacete a meu dispor e nas noites mais longas quando já caminhava desvairado rememorando episódios inverosímeis sorri sempre quando cheguei ao limite da razão. Assustado pela parcela mais livre do meu ser, recuava, satisfeito por ter notado, uma vez mais, o limite. Para voltar a ver a linha é preciso vazio.


6. Aniversário. Mais um marado que se senta voluntariamente ao meu lado. Ex-militar completamente doido numa representação caricatural do que será o traumatizado de guerra por excelência. Emociona-me o seu desvario. Emociona-se ele relembrando a juventude que ia passando no bar entre músicas com trinta anos. Não entrarei em detalhes. São demasiado puros e teatrais.


e quando regressámos os nossos passos vibraram uma finíssima corda que tinha ensarilhada na estaca privada da razão e senti que a alegria tinha-nos invadido e que mil compartimentos deviam ser ocupados mil vezes, em simultâneo, por ti.


7. Ficas a saber, pelos utensílios contemporâneos de máxima ciência, que morreu a Helena Almeida. Está a escurecer e a trovoada começa a sua cerimónia no limite do horizonte. Sentas-te nesse tépido muro à espera da marcha da música e da luz.


mascarei-me múltiplas vezes de máquina de produzir variações movido pela fúria. E se me comovo e as lágrimas me caem involuntariamente é pelo temor de perder o meu motivo. Porque não posso esquecer as nucas da fotografia, os desfigurados pela rejeição. Não posso perder na neblina os excluídos pela cristalização do instante.
:
- avô, avó, quem me garante que este marulhar nas linhas das mãos não subirá o berço e me afogará mais adiante quando já não mereça o trabalho colossal da vossa devoção?


8. Ouvir, com alguma regularidade, a palavra mestre. No início ouvi-la de um modo trocista. Depois em concordância e com estima. Um mestre com que travei de perto: Isaclino. Um artesão que dedicou toda a sua vida ao trabalho em barro retratando cantadores alentejanos, estórias bíblicas ou lendas da cidade. Os traços naïve iam bem com a sua postura gentil. Prestara-se ao trabalho do mesmo material durante décadas, até ao fim, e isso bastava-lhe.
A mão do oleiro assume as mais diversas formas e a cada um resta apenas encontrar a oficina que mais lhe convenha.


, e porquê tentar fazer justiça a um assunto com fragmentos circunstanciais quando temos toda uma biografia em latência por ver o vislumbre perene da justiça?


9. Numa esplanada, com vinte e dois graus no final do Outono, depois de um café e uma queijada, de perna cruzada, cerra os olhos enquanto o sol insistente, mas aprazível lhe aquece a pele, o casaco de ganga, a barba. Faz tempo. Contente com a possibilidade de ali estar e ninguém o incomodar abre uma fresta de pálpebra e apanha-se reflectido no vidro expositor de uma esteticista. Vesse, foca-se. É belo. Apesar dos maus hábitos, do branco precoce, das rugas prematuras, do sorriso desalinhado por estórias familiares, é um pequeno animal reluzente em conformidade com o que o rodeia. Sorri e aprecia o efeito do sorriso no reflexo do vidro. Pensa que terá saudades desta cidade: o barulho ensurdecedor dos pássaros a qualquer hora do dia, dos malucos que foi conhecendo, das velhas com as suas orações perenes, das raparigas de dezassete anos que rasgam a harmonia do olhar. Pensa nos queixumes que tem feito acerca da solidão e confirma que é tudo verdade. Não é raro, no entanto, que no mesmo dia em que tem um desses ataques de solidão seja o dia em que novamente sozinho, à noite ou ao final da tarde, se contente com um pôr-do-sol de cinco cores.
Não poderia continuar ali, pois naturalmente daria em doido a falar sozinho com as paredes, apanhando beatas da rua enquanto insultava um parente invisível. Mas afinal seria esta uma cidade amiga, pardieiro improvável, musa, rameira serena. Uma cidade que não é mais que a aceitação do que der e vier.


O melhor mesmo será contar o mínimo. Quanto menos enunciamos menos traímos o material não evocado. Porque tudo, quando de temas centrais falamos, é digno de referenciação.
Queria explicar como foi possível teres encontrado um rato morto na panela ao lume e de como depois de o tirares levaste a comida até ao resto da família que esperava no pinhal. Em como em tantas décadas nunca entraste num café sem a presença do teu marido. Ou de como ele ganhou a posição de tintureiro na fábrica com o seu caderno de fórmulas alquímicas que outros espiavam quando se distraía. E descrever o trilho percorrido de noite pelo mato até ao local que vigiavas na Alemanha e como todos os detalhes são fios indiscerníveis entre pequenas verdades e grandes ilusões. E até da tua traição falaria se soubesse colocar devidamente a língua ao serviço da tua justeza.


10. E o moinho do senhor Soares, a sua pequena janela e as buganvílias e todos os que se apresentaram a horas certas para tornar os meus dias mais luminosos. E o café do senhor Costa abandonado à sua sorte de casa de jogos anacrónica. E o Pica com a arte do buinho, e os seres extravagantes no nevoeiro junto ao castelo. E as viagens de carro com A. e as pedras minúsculas arremessadas na pedreira com as gigantes a nos susterem com paciência de quem todo o tempo do mundo enquanto as coisas girarem sobre si mesmas.


e a mão suspensa e pousada na tua durante tantas noites que ainda não pertenciam ao carrascos. A tua mão engrossada pela orquestração das hastes e dos cortes.
Um dia terei que perambular sobre essa união para compreender a incondicionalidade.