comem-se versos?


breves sobre a demagogia da «poetização do mundo»

(...) a dominação do homem pela criação do homem é ainda mais ridícula que a dominação do homem pelo homem.
George Woodcock

1. Numa aula de Ciência Política, há alguns anos, vi um amigo a ser arrasado pelo professor quando falando das vítimas de um conflito armado, que permaneceu vários anos num impasse, confessou que, na sua perspectiva, os habitantes da nação destruída estavam-se nas tintas para quem os apoiava, se os americanos ou os russos. Usou a expressão «não se comem ideologias», o que suscitou um monólogo do mestre-escola de dez minutos onde entre referências históricas, sociológicas e circo de variedades dizimou o outro à frente de todos.

Se a expressão é inequivocamente problemática, simplificadora e errante, é também a melhor expressão que traduz um certo sentimento da vítima, em vários contextos.

2. Lembrei-me deste episódio enquanto lia uma crónica da escritora Filipa Martins onde puxa vários poetas e escribas à baila para reflectir acerca do problema de velocidade do nosso tempo e onde o seu objectivo, parece-me, seria apontar a poesia ou a poetização do mundo como uma «máquina do tempo que recupera humanismo».

Isto vai ao encontro de uma imagem que circulou na internet nas vésperas, e nos dias seguintes, da eleição de Bolsonaro onde um boneco, e cito de memória, diz para o outro que lhe pergunta o que fazer agora: «poesia, esses canalhas não aguentam poesia».

Num país onde haverá meio milhar de leitores de versos alheios são da natureza da twilight zone estes reptos pueris. Estamos perante a deformação de tomadas de posição que as redes sociais cria onde na sala de espelhos confundimos a cartola com o coelho e usamos tudo para o mesmo fim.

O uso da poesia é tema que vários cicerones usaram para encher milhares de páginas eloquentes, mas a nós, filhos deste século, é evidente que não servirá para salvar as democracias liberais ou alguma posição ética elevada perante o que nos rodeia e se desmorona. 

3. (Que poesia? Que escritores?)

Outra questão a levantar é: que poesia é que eles não aguentam? Parece que aguentam toda, pois não frequentam nenhuma. É na área financeira que se encontram a maioria das respostas ao surgimento de personagens insólitas e déspotas, mas se quiséssemos aderir a este apelo poético e patético, a que poesia nos agarraríamos enquanto cidadãos deste país, em 2018?

A larga maioria da poesia de hoje é complacente e isso é uma das imposturas que já Roger Callois aponta em 1945 ao ofício do versejador. Hoje temos, numa larga maioria, poesia de melancólica rememoração pessoal e, do outro lado, os usuários da bimbi imagética onde, apoiados nas tradições do século passado, se usa o pastiche de imagens não tão insólitas assim, de modo a criar alguma reacção ao leitor menos avisado.

Esse é também um dos problemas: mesmo alinhando nessa resistência pela poetização do mundo, poucos versos escritos agora reflectem a nossa condição actual. Mesmo que sejamos tontos não identificamos nenhum bote de salvamento neste titanic em desmoronamento.

4. O caminho que se está aqui a traçar com recurso à perambulação no quarto estreito das nossas ideias não vai, de todo, ao encontro do apelo ao "social" na poesia. O século passado já aí esteve, já resolveu o que pode, deixou algumas sobras, e seguiu-se caminho. Nada se deve pedir mais ao poema que viva pelas suas pernas na sua condição absoluta entre a elevação ou a queda consoante o gosto dominante de cada geração. 

E é certo que há excepções, há versos que identificamos como produtos deste tempo sejam eles contemplativos, inconformados, perigosos ou indiferentes. Mas talvez só um feixe infinitesimal de gente caiba no recreio dos poetas que inclinam um pouco as molduras das ideias em tempos sombrios e um grupo restrito dessa alcateia o consiga fazer bem no tempo da sua vida. Serão os que exaltam amorosamente os assuntos de dentes cerrados. São os que apontam, descrevem o que vai mal, fazem-no com mestria e, entre o cheiro da olaria e o código de conduta do excluído imprevisível, deixam um rasto de perigo: olhamos para essa direcção porque tememos a incerteza e o que acontecerá se permanecermos de pálpebras cerradas.

5. E se cada vez é mais difícil encontrarmos gente dessa não é por falta de talento. Cada vez mais, na linha de produção de bordados literários, há mais competência e rapidez na gestação de livros bem escritos de fio a pavio. Não há, na esmagadora maioria, é força vital aliada a uma inteligência acutilante. Normalmente não há essa conjugação nem cada um dos pressupostos em separado. 

6. E esse sortido fino referido anteriormente justificará os apelos dos escritores assim-assim para causas alienadas? Não creio, porque: quem faz o apelo não se esforça por conhecer a fundo o problema que o aflige; quem faz o apelo apoia, mesmo que involuntariamente, uma estupidificação de quem acredita em si tornando mais difícil a identificação do problema; quem faz o apelo não tem critério que lhe permita identificar quem chamar à mesa para pôr os pontos nos i's.

7. E a mudança do nosso comportamento e da nossa visão da ordem geral das coisas não pode começar com um pequeno incentivo ao que de mais pessoal, biográfico, anti-social, temos? Pode, claro. Mas entrando por aí, neste ou em qualquer outro assunto, só resta consumir e esperar para ver. Como concordamos que a velocidade do nosso tempo é um aspecto grave a ser pensado com urgência, a espera pode ser bicuda.